INTRODUÇÃO
O tema a ser tratado não foi, até o momento, objeto de análise específica em nossa doutrina nacional, embora se apresente como relevante diante da contradição existente entre alguns julgados dos Tribunais e o que decide sobre a matéria o Supremo Tribunal Federal, posteriormente, provocando sérios conflitos de julgamentos e enormes prejuízos ao jurisdicionado.
O nosso objetivo no presente trabalho é traçar um perfil do que está ocorrendo, trazendo lições doutrinárias com o fito de ajudar, levando a uma ordenação da matéria e buscando uma solução justa através de instrumento hábil ao jurisdicionado para atendê-lo em momentos de impasse intransponível das vias utilizáveis na atualidade.
A inexistência de trabalhos sobre o tema no âmbito da doutrina nacional e de uma maior ousadia da jurisprudência dificulta a tarefa ao tratar deste assunto, tendo de se recorrer a parâmetros teóricos e buscar elementos em temas variados para se fazer um apanhado geral a fim de oferecer um material que provoque debate e maior aprofundamento sobre a coisa julgada inconstitucional em nosso país.
A coisa julgada inconstitucional está a merecer da classe jurídica brasileira uma nova postura diante das situações conflitantes que possam surgir no momento em que o jurisdicionado se depara com uma coisa julgada inconstitucional, sem que nada possa ser feito depois de consumado o prazo decadencial de uma rescisória.
Alguns casos com que nos deparamos, na prática, são exemplos típicos dessas situações conflituosas. Vejamos. Basta ver o caso de um servidor público que obteve determinada vantagem funcional perante o Judiciário e, uma vez transitada em julgado a sentença que concedeu tal vantagem, está assegurado em seu direito de forma definitiva. Esse servidor, no entanto, exerce cargo idêntico ao de um outro colega da mesma repartição, ingressaram no serviço público na mesma data, com salários rigorosamente idênticos. O outro servidor também foi ao Judiciário buscar a mesma vantagem. Nada obstante, o Judiciário negou o seu direito, quer porque um outro Juiz entendeu que não fazia jus a tal pleito, quer porque houve mudança da jurisprudência sobre o assunto. A sentença proferida no processo desse outro servidor também transitou em julgado. A perplexidade reside no fato de que um está percebendo salário maior, concedido pelo Judiciário, e o outro uma menor remuneração, embora ambos estejam invocando a irreversibilidade de suas situações com base na coisa julgada. Pergunta-se: é justa essa situação? Não está havendo uma afronta ao princípio da isonomia? O princípio da isonomia não está insculpido na Constituição? Um princípio constitucional deve ser sacrificado em nome da coisa julgada, de forma irreversível? Não deveria haver algum remédio legal para corrigir essa distorção?
Diante do caso posto e das indagações que surgem, parece que se justifica a apreciação desse problema, quer no campo do Direito Processual quer no do Direito Constitucional. Por isso é que nos propomos a fazer uma análise do tema, preocupado que estamos, na condição de aplicador da norma, em descobrir a real finalidade do Direito e, especialmente, do Judiciário.
A preocupação aqui manifestada não é isolada. A Professora ADA PELEGRINE GRINOVER, adverte que “Preocupante fenômeno tem-se revelado na prática judiciária desses últimos tempos: inúmeros litígios entre a Fazenda Pública e os contribuintes de diversos tributos, de duvidosa constitucionalidade, têm agitado e sobrecarregado os tribunais do País, com decisões divergentes.” Da mesma forma que ocorre com os tributos, tem se dado o mesmo em outras áreas como as vantagens de servidores públicos antes referidas, sendo que, em muitos casos, os órgãos jurisdicionais têm afirmado a inconstitucionalidade dos referidos tributos ou vantagens, através do exercício do controle difuso da constitucionalidade, cujas sentenças vêm a se revestir da autoridade da coisa julgada.
Acrescenta ADA PELLEGRINI GRINOVER ter acontecido, no entanto, “que posteriormente o STF, pela via do recurso extraordinário, veio a declarar, incidenter tantum, a constitucionalidade do tributo, em casos concretos distintos daqueles em que se deu a coisa julgada favorável ao contribuinte.”
1GRINOVER, Ada Pellegrini. Ação Rescisória e divergência de interpretação em matéria constitucional.
Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, jul./set.1997, p. 37. Ano 22.
2 Idem... p. 37.
Inicialmente, no primeiro capítulo, dando início a uma análise do tema proposto, fizemos uma incursão teórica a respeito dos princípios de justiça e segurança jurídica, face a disputa valorativa que os mesmos representam e a adequação ao tema em discussão. Para uma melhor compreensão desses institutos, procuramos ter uma visão sobre a norma jurídica, sua natureza, validade e eficácia. Uma rápida idéia se faz presente quanto a teoria do ordenamento jurídico para, em seguida, adentrarmos no fértil campo dos conceitos de justiça e segurança jurídica, pondo-se em evidência as correntes filosóficas existentes a esse respeito. Não se deixa de incursionar também nos princípios norteadores do sistema jurídico, fechando o raciocínio sobre a questão da segurança jurídica, face ao princípio de justiça.
O segundo capítulo versará sobre a coisa julgada, vista sob o ângulo de seu conceito, classificação e algumas noções alienígenas, sem se abandonar alguns aspectos históricos e a sua evolução no Brasil.
Ao terceiro capítulo dedicamos o estudo do controle de constitucionalidade, onde restaram demonstradas as diversas formas de controle para, em seguida, verificarmos os efeitos emanados da declaração de inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal, através do Recurso Extraordinário e das Ações Diretas de Constitucionalidade e Inconstitucionalidade.
O capítulo quinto se destina a fazer uma análise crítica dos efeitos produzidos pela coisa julgada, no que concerne ao problema das nulidades processuais e ao fenômeno das nulidades da coisa julgada inconstitucional.
O sexto capítulo se presta a mostrar os meios que a coisa julgada inconstitucional pode ser questionada, sendo a ação rescisória o mais hábil, enquanto não estiver extinta pela decadência, ao passo em que os demais, como o Mandado de Segurança e o Ato Declaratório de Inexistência de relação Jurídica são apenas referidos pela doutrina como perfeitamente adequado, sem que tenha recebido da jurisprudência o prestígio que se apregoa.
O sétimo capítulo está sendo utilizado como “gancho empírico”, visando mostrar no campo prático o descompasso existente a respeito do fenômeno da coisa julgada inconstitucional. O casuísmo demonstrado serve para justificar o tema proposto.
Por último, versamos sobre a proposição do presente trabalho, propugnando por uma ação declaratória de inexistência de coisa julgada inconstitucional, passando por uma análise da mudança de concepção da doutrina e jurisprudência para se alcançar tal desiderato.
CAPÍTULO I
SEGURANÇA E JUSTIÇA
Este capítulo poderia até ser o tema do trabalho, tão arraigado se encontra ao que aqui nos propomos a discutir. O direito, como objetivador da preservação dos mais diversos valores, guarda em suas entranhas esses princípios tão caros à humanidade: justiça e segurança.
Por isso ao se falar da Coisa Julgada Inconstitucional não se poderia deixar de enfatizar com grande pompa esses princípios. Nada obstante, a importância da justiça e da segurança na ordem jurídica envolve uma complexidade de outros valores e características do direito que são impossíveis de serem excluídos da análise do tema.
Assim, para podermos ter uma visão mais abrangente, necessário se faz que outros sub-temas aqui sejam tratados, como a norma jurídica, o ordenamento jurídico e alguns princípios que embasam o nosso sistema jurídico, conceituando-os e mostrando suas importâncias nesse emaranhado de idéias.
1.1. Norma jurídica: conceito, características e finalidade
O entendimento a respeito da segurança e justiça começa pela noção de norma jurídica, pois esta é quem oferece o indicativo desses valores, como forma de melhor nos situarmos sobre o tema aqui versado. O conceito, características e finalidade da norma jurídica é o primeiro passo para nossa empreitada.
Para ARNALDO VASCONCELOS “O conceito mais simples de norma jurídica e, talvez por isso mesmo, o de maior virtualidade, embora envolva uma tautologia, é aquele que resulta do posicionamento da expressão sintética “jurídica” ao lado da correspondente expressão analítica “de Direito”: norma jurídica é norma de Direito, isto é, norma de fazer Direito. A norma jurídica é regra de fim.
Com esse conceito dimensionam-se, aí, os aspectos formal e material do Direito. O que se vê é que o direito de que se trata é aquele que se põe através da norma, ou seja, o direito positivo. Por isso, o direito posto na norma é Direito-previsão ou previsão de Direito e, com isso, acontecendo o fato normativo, realiza-se a previsão, surgindo daí o Direito.
É ainda ARNALDO VASCONCELOS que diz com acerto que “Qualquer definição de norma jurídica seria, se não impossível, pelo menos insuficiente. Em todo caso, jamais se alcançaria a definição exata das ciências naturais”. Essa dificuldade quanto à completude do conceito de norma jurídica tem a ver com as características que cada corrente doutrinária indica como forma de melhor compreendê-la.
Muitas são as correntes doutrinárias que apontam as notas caracterizadoras da norma jurídica. Dentre elas invoquemos a de que essas características são a bilateralidade, a disjunção e a sanção. Sanção aqui entendida como “institucionalização do poder posto a serviço do Direito por intermédio do Estado ou das associações que o elaboram e o garantem, afastando-se de logo, por conter o vício original da redução, todo conceito de norma jurídica em termos de sanção estatal ou, o que seria pior, de coatividade ou coação.”
Essas características da norma jurídica indicadas por ARNALDO VASCONCELOS são também encontráveis na teoria egológica de CÓSSIO, sintetizada por ENRIQUE R. AFTALIÓN e JOSÉ VILANOVA, que vê a norma como coativa, intersubjetiva ou bilateral, disjuntiva e aplicável através da sanção. CÓSSIO, apesar de incluir a coação como elemento integrante da norma, entende não ser equiparável o direito a um ato de força, porque nem todos os atos jurídicos são atos de força e, por outro lado, nem todos os atos de força têm igual sentido para o direito. .6
3 VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria da Norma Jurídica. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1993, p. 26.
4 Idem... p. 27.
5 Idem... p. 27-28.
Outras correntes doutrinárias têm uma visão diferente da norma jurídica. DEL VECCHIO, citado por NORBERTO BOBBIO, entende que a norma jurídica comporta quatro características: bilateralidade, generalidade, imperatividade e coatividade; CARNELUTTI, mencionado por NORBERTO BOBBIO, vê na norma jurídica dois ingredientes: preceito e sanção e o positivismo jurídico, como um todo, tem a norma jurídica como coativa e imperativa, além de outros requisitos.
É perfeitamente possível se constatar que os elementos ou características da norma jurídica variam de acordo com o pensamento reinante em cada teoria ou corrente doutrinária. Aliás, esse é um traço sempre comum a quase todos os institutos jurídicos.
Com relação à finalidade da norma jurídica, ARNALDO DE VASCONCELOS indica que sua vocação especial “é realizar Direito. E só há Direito a partir de uma norma que o preveja. O campo de incidência das normas jurídicas constitui o mundo do Direito. Entretanto, sempre haverá normas para todas as hipóteses possíveis. Se não se encontram explícitas no ordenamento, com certeza, nele estão implícitas”.10
Não se pode deixar de reconhecer que a norma jurídica como realizadora do Direito objetiva, também, a segurança jurídica. Essa idéia está presente em MANUEL ARAGON, ao afirmar que “a segurança jurídica (pois o positivismo, embora renegue os fins do Direito, postula, inequivocamente, este fim) é o sustentáculo, sem outros acréscimos, das normas de todo o ordenamento (ou, para o positivismo, de todo o sistema jurídico), senão naquela que o encabeça e por sua vez a sustenta: a Constituição”. 11
6 AFTALIÓN, R. Enrique e VILANOVA, José. Introduccion al Derecho. 2.ed. Buenos Aires: Abeledo-
Perrot, s.d., p. 362.
7 Idem... p. 362.
8 Idem... p. 154.
9 Idem... p. 131-137. Acrescenta que são sete as características que o positivismo dispensa à norma
jurídica: o direito como fato e não como valor; a coação; a lei como fonte proeminente do direito; o
imperativismo da norma; a norma dentro de um ordenamento jurídico, dando-lhe compleitude e
coerência; a interpretação como elemento para se entender a norma e a obediência absoluta da lei
enquanto tal.
10 VASCONCELOS, Arnaldo, op. cit. p. 27.
11 ARAGON, Manuel. Constitucion y Control del Poder. Buenos Aires: Ciudad Argentina, 1995, p. 45.
“La seguridad jurídica (pues el positivismo, aunque reniegue de los fins del Derecho,
postula, inequívocamente, este fin) puede sustentar, sin otras adiciones, a las normas de
Esse ponto de vista não é regra absoluta nem invariável. Há quem sustente, como faz ARNALDO DE VASCONCELOS, que
“as propaladas estabilidade e segurança da própria norma escrita são relativas, porque, em verdade, o que se aplica é a interpretação normativa, e nunca a norma em seu presumível e problemático significado original. Ou melhor, suas reinterpretações, dado que interpretada ela já o foi, quando de sua criação. Nesse sentido, deve entender-se a afirmativa de Kelsen, segundo a qual ‘a norma funciona como esquema de interpretação’. Assim sendo, ‘o juízo em que se enuncia que um ato de conduta humana constitui um ato jurídico (ou antijurídico), é o resultado de uma interpretação específica, a saber, de uma interpretação normativa’.
Não enxergando como objetivo da norma jurídica apenas o elemento segurança, ARNALDO DE VASCONCELOS, com razão, apregoa que a norma não está desprovida de conteúdo e por isso “a norma jurídica obriga porque contém preceito capaz de realizar, em cada época e de acordo com sua específica mundividência, aquilo que se entende por justiça. Se essa falha em grau intolerável, como ensina Tomás de Aquino, o Direito positivo cede lugar ao Direito de resistência, não positivo. Será o “apelo aos Céus”, a que depois se referiria John Locke. O fundamento da norma jurídica é dado, pois, pela razão de justiça”. 13
As teorias que se preocuparam com a razão de justiça como fundamento da norma jurídica foram as teocráticas, jusnaturalista, contratualista e neocontratualista, histórica, sociológica e normativistas. 14
Reunidos esses pontos a respeito da norma jurídica, invoca-se ARNALDO DE VASCONCELOS para dizer que “A estas alturas, os elementos fundamentais do conceito foram, todos, devidamente colocados. Então, com Korkounov, pode concluir-se que jurídicas são as normas “de delimitação de interesses, fixando o limite entre o direito e o não-direito”. 15
todo el ordenamiento (o, para el positivismo, de todo el sistema jurídico), pero no a la
que lo encabeza y, a sua vez, lo sustenta: a la Constitución”. (Tradução nossa).
12 VASCONCELOS, Arnaldo, op. cit., p. 27.
13 Idem... p. 97.
14 VASCONCELOS, Arnaldo, op. cit., p. 97-127.
15 Idem... p. 28.
As características e finalidade da norma continuarão a ser objeto de relato no item seguinte que cuida da lei e da sentença, pois estas são normas específicas dentro do gênero “normas jurídicas”.
1.2. Natureza jurídica da lei e da sentença
Afirmam EDUARDO GARCIA DE ENTERRÍA e TOMÁS-RAMON FERNÁNDEZ que “O termo lei costuma ser empregado em sentidos diferentes que convém especificar para evitar equívocos. Algumas vezes, ao falar de lei, está se fazendo referência a toda norma jurídica. Outras vezes, porém, utiliza-se como equivalente a norma escrita, sem distinção alguma de sua categoria”.
Segundo ROSCOE POUND, existem doze concepções sobre o que é a lei, assim resumidas: é uma norma ou conjunto de normas divinamente ordenadas para a ação humana; a idéia de lei como tradição dos velhos, remotos costumes que estavam provados serem aceitáveis pelos deuses e, assim, apontavam o caminho que o homem poderia percorrer com segurança; concebe a lei como a prudência ou sabedoria registrada de sábios antigos; a lei pode ser vista como um sistema de princípios filosoficamente descobertos; a lei encarada como um corpo de investigações e declarações sobre um código moral imutável e eterno; a idéia de lei como um corpo de acordos de homens numa sociedade politicamente organizada, no tocante a suas relações mútuas; concebeu-se a lei como um reflexo da razão divina que governa o universo; a lei foi concebida como um conjunto de ordenações da autoridade soberana numa sociedade politicamente organizada; considera-se a lei um sistema de preceitos descobertos pela experiência humana; pensaram lei como um sistema de princípios, descoberto filosoficamente e desenvolvido em pormenor por escritura jurídica e decisão judicial; no séc. XIX, a lei foi considerada um corpo ou sistema de normas impostas aos homens em sociedade pela classe dominante do tempo; a noção de lei baseia-se nos ditames de ordem econômica e social, relativamente à conduta do homem em sociedade.
16 ENTERRÍA, Eduardo García de e FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Trad. de Arnaldo Setti. Curso de
Direito Administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991, p. 147.
ROSCOE POUND sustenta que a finalidade da lei passou, dentro dessas concepções antes demonstradas, por três objetivos que marcaram profundamente a história e estamos vivendo um quarto: o primeiro foi com o fim de manter a paz numa determinada sociedade; o segundo, manter o status quo social; o terceiro, promover ou permitir o máximo de livre auto-afirmação individual e quarto e último, no qual os juristas começaram a pensar mais em termos de necessidades, desejos ou expectativas humanas do que de vontades humanas. A lei é vista como um máximo de satisfação de necessidades e não de auto-afirmação. 17
Quanto à sentença, PAULO ROBERTO DE OLIVEIRA LIMA faz importantes considerações ao compará-la com a lei. Diz ele “que a decisão, do ponto de vista de sua estrutura lógica, apresenta significativos pontos de contato com a lei, porquanto esta também se constitui num comando, numa ordem, numa determinação”. 18
Acontece que essa identidade é relativa, embora tenha “produzido afirmações que adquirem foros de verdade e são úteis por destacarem aquilo que os dois atos estatais (sentença e lei) têm em comum”. Assim, o Código de Processo Civil ao afirmar que “A sentença que julgar total ou parcialmente a lide, tem força de lei nos limites da lide e das questões decididas.” Com isso, é possível se constatar que o Código associa a sentença à lei, reconhecendo-lhes identidade.
Como se disse, essa igualdade é relativa, uma vez que somente algumas características lhes são peculiares como o fato de serem estatais, obrigatórios, dirigirem-se a outrem, constituírem-se em comandos e disciplinarem relações sociais regendo direitos, deveres, pretensões, obrigações e exceções.
PAULO ROBERTO DE OLIVEIRA LIMA, com razão, indica mais pontos de divergências significativos entre a lei e a sentença do que identidades entre esses dois institutos. Para isso afirma que
“característica marcante da lei é seu abstracionismo (caráter hipotético), o que significa dizer seu descompromisso com qualquer acontecimento concreto. Aliás, não poderia ser de outra forma, visto que a lei não se aplica a fatos ocorridos antes de sua vigência. Portanto, ainda que o legislador, para elaborar a lei, sirva-se da experiência de fatos passados, examinando o meio social e as relações que lhe pareçam carecedoras de disciplinamento para a coexistência pacífica dos homens, as regras ao final convoladas em lei não podem apanhar senão os acontecimentos futuros.
Com a sentença dá-se o oposto. Somente podem apanhar os fatos passados, dado que o juiz sempre analisa a incidência da norma, depois de sua ocorrência.
A sentença também se separa da lei por se tratar de ato plenamente vinculado. O juiz não pode, sem ofensa aos mais comezinhos princípios de Direito Constitucional, adotar solução diferente da prescrita na lei, ou, à falta dela, no Direito”. Com a lei se dá justamente o oposto, porquanto ressalvados os aspectos formais, relativos ao processo legislativo, bem assim respeitadas as restrições impostas pela Carta Política, ela (a lei) tem ampla liberdade de escolha das soluções. Trata-se de atividade plenamente discricionária”. 20
17 POUND, Roscoe. Introdução à Filosofia do Direito. Trad. de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: ZAHAR,
1965, p. 41-53.
18 LIMA, Paulo Roberto de Oliveira. Contribuição à Teoria da Coisa Julgada. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1997, p.35.
19 Idem... p. 35.
Conclui afirmando PAULO ROBERTO DE OLIVEIRA LIMA que
“De todas as diferenças que distanciam sentença e lei, seguramente a mais significativa é a impessoalidade (generalidade) da segunda, frente a pessoalidade (individualidade) da primeira. Realmente, a lei é editada para se aplicar a todas as pessoas submetidas à soberania do Estado, bastando para tanto que qualquer uma realize ou participe do acontecimento nela previsto. Dessa impessoalidade, inclusive, decorre outra característica da lei: a inesgotabilidade. Tal significa que a lei não se exaure com a incidência e aplicação, dado que editada para incidir e ser aplicada indefinidamente, tantas vezes quantas ocorrerem os fatos tomados como seu suporte. A lei não se gasta com a incidência. Não diminui de volume. Não se esgota. ... Já a sentença, em tendo caráter concreto, consoante acima explicitado, se refere exclusivamente a determinados indivíduos”. 21
O ponto de vista de HANS KELSEN é de que “A decisão judicial cria uma norma individual que deve ser considerada válida e, portanto, jurídica, contanto que não tenha sido anulada, da maneira prescrita pelo Direito, por ter sido a sua “ilegalidade” verificada pelo órgão competente”. 22
20 LIMA, Paulo Roberto de Oliveira. Op. cit., p. 36-37.
21 LIMA, Paulo Roberto de Oliveira. Op. cit., p. 37-38.
22 KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. São Paulo: Fontes, 1990, p. 160.
Segundo HANS KELSEN, a doutrina tradicional reputa como aplicação de Direito, antes de mais nada, a decisão judicial, a função dos tribunais. Afirma o mestre de Viena que “Quando soluciona uma disputa entre duas partes, ou quando sentencia uma punição para um acusado, o tribunal aplica, é verdade, uma norma geral do Direito estatutário ou consuetudinário. Simultaneamente, no entanto, o tribunal cria uma norma individual que estipula que uma sanção definida seja executada contra um indivíduo definido”. 23
Essa posição de HANS KELSEN é criticada, parece-nos com razão, por ARNALDO VASCONCELOS, quando diz que “Todos os que reduzem o Direito à sentença – dado o pressuposto de que ela decorre sempre de um ilícito, único motivo de ir ao tribunal – cometem equívoco semelhante ao de Hobbes e Carnelutti. Enquadra-se na hipótese a Teoria Pura de Kelsen”. 24
Essa concepção de ARNALDO VASCONCELOS que se baseia no fato do relacionamento que HANS KELSEN estabelece entre norma geral (constitucional) e individual (sentença), peca por imprecisão porque, na verdade, “a sentença só assume a qualidade de norma jurídica quando Direito, que ela revela, torna-se, por sua uniformidade e constância, modelo de conduta social. Portanto, a norma jurisprudencial, e não a sentença, é que constitui norma jurídica. Excetue-se a sentença normativa, proferida na jurisdição do Direito do Trabalho”. 25
Hoje, devemos acrescentar a essa hipótese as sentenças proferidas nos processos coletivos em geral e nas Ações Diretas de Constitucionalidade e Inconstitucionalidade, as quais estendem a qualidade da coisa julgada a todos que estejam alcançados pela relação jurídica decidida.
Como vimos a sentença - uma espécie de norma individual – aproxima-se em alguns pontos da lei, tendo em vista certas características comuns, porém com esta não se confunde nem guarda total identidade.
23 Idem... p. 139.
24 VASCONCELOS, Arnaldo. Op. cit., p. 15.
25 Idem... p. 15-16.
1.3. Validade e eficácia das normas jurídicas
Ao se tratar do tema da norma jurídica não podemos nos furtar a uma rápida idéia sobre a validade e eficácia das normas jurídicas dentro da teoria geral do Direito.
O objetivo aqui é apenas trazer algumas informações sobre esse tema tão palpitante e que encontra grande dificuldade no seio doutrinário quanto à unidade de seus conceitos e a finalidade a ser alcançada.
Os pontos aqui exposto servirão para auxiliar no entendimento do que será discorrido no capítulo referente à análise crítica dos efeitos da inconstitucionalidade das normas e na proposta do presente trabalho sobre a ação declaratória de coisa julgada inconstitucional.
TEREZA ARRUDA ALVIM PINTO proclama que “Eficácia e validade são palavras que normalmente vêm juntas, apresentando nítida conexão contextual, embora não queiram significar a mesma coisa. O problema começa com as incertezas terminológicas e não é particular à teoria do Direito Constitucional, mas diz respeito à ciência jurídica em geral.” 26
Invocando ensinamento de TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JR., acrescenta TEREZA ARRUDA ALVIM PINTO que “Às vezes fala-se, na terminologia usual, indistintamente, em vigência, validade, vigor e eficácia”. Depois, acrescenta a mesma doutrinadora que a nulidade relaciona-se com o problema da validade, e a eficácia, de uma forma ou de outra, com a produção de efeitos. 27
MARCELO NAVARRO RIBEIRO DANTAS informa que HANS KELSEN faz a distinção entre validade e eficácia quando diz que a primeira se encontra inserta na ordem do dever ser, mas a última na do ser: “Como a vigência da norma pertence à norma do dever ser, e não à ordem do ser, deve também distinguir-se a vigência da norma da sua eficácia, isto é, do fato real de ela ser efetivamente aplicada e observada, da circunstância de uma conduta humana conforme a norma se verificar na ordem dos fatos.” 28
26 PINTO, Teresa Arruda Alvim. Nulidades da Sentença. 3.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993,
p. 80.
27 Idem... p. 81.
Para HANS KELSEN, ainda citado por MARCELO NAVARRO RIBEIRO DANTAS, se uma norma ao prescrever uma conduta que deve ser apoiada em norma superior, ela é válida, sem que isso implique que a conduta nela prescrita se verifique no mundo real, dos fatos, do ser, enfim. O mundo do ser – afirma HANS KELSEN - “diz respeito à eficácia, ou seja, ao âmbito em que se afere o cumprimento de verdade, ou o descumprimento da conduta prescrita, porquanto a conduta que é nem sempre corresponde àquela que deveria ser”. Por isso é possível surgir a idéia de uma norma válida, porém não eficaz. “Válida porque existente de forma adequada à norma superior, mas ineficaz porque a conduta nela estipulada não ocorre, de fato”. 29
A posição de HANS KELSEN trazida pelo Professor MARCELO NAVARRO RIBEIRO DANTAS foi exposta em sua Teoria Pura do Direito. Posteriormente, ao escrever sobre a Teoria Geral do Direito e do Estado, HANS KELSEN explicou o tema com mais detalhe dizendo:
“No que foi escrito anteriormente, tentamos esclarecer a diferença entre a validade e a eficácia do Direito. Validade do Direito significa que as normas jurídicas são obrigatórias, que os homens devem se conduzir como prescrevem as normas jurídicas, que os homens devem obedecer e aplicar as normas jurídicas. Eficácia do Direito significa que os homens realmente se conduzem como, segundo as normas jurídicas, devem se conduzir, significa que as normas são efetivamente aplicadas e obedecidas. A validade é uma qualidade do Direito; a chamada eficácia é uma qualidade da conduta efetiva dos homens e não, como o uso linguístico parece sugerir, do Direito em si. A afirmação de que o Direito é eficaz significa apenas que a conduta efetiva dos homens se conforma às normas jurídicas. Assim, validade e eficácia referem-se a fenômenos inteiramente diferentes”. 30
28 DANTAS, Marcelo Navarro Ribeiro. Existência, Vigência, Validade, Eficácia e Efetividade das
Normas Jurídicas. In Revista da Procuradoria Geral da República, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993,
p. 158, v. 2.
29DANTAS, Marcelo Navarro Ribeiro. Op. cit., p. 158.
30 KELSEN, Hans. Op. cit., p. 44.
Os temas validade e eficácia são trabalhados sempre com essa distinção, o que nos estimula a visualizar cada conceito de forma autônoma, ou seja, explicando o que vem a ser validade e o que se entende por eficácia.
TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ nos transmite a idéia de que validade das normas jurídicas é tema de muitas facetas, pois
“nele estão implicados problemas relativos ao fundamento da ordem jurídica, que relevam, por sua vez, discussões em torno dos conceitos de legalidade e legitimidade. Validade também se toma no sentido de afetividade, de cumprimento e de aplicação das normas. Não se pode esquecer ainda as discussões em torno da validade, como termo primitivo da lógica deôntica, ou as especulações sobre o sentido lógico-transcendental do valor como categoria básica do pensar normativo. A Dogmática Jurídica, por seu lado, costuma assumir o termo nas suas implicações práticas, girando suas discussões em torno da capacidade da norma em resolver tais e tais conflitos, criando-se, então, conceitos como direito vigente, direito eficaz, que procuram enquadrar questões como a do âmbito de aplicação, retroatividade e irretroatividade, nulidade e anulabilidade, etc.”.
Essa explicação de TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR é importante para compreendermos em qual sentido o termo validade está sendo utilizado. Nossa meta aqui não é dirimir por completo esses conflitos, mas ficarmos atentos a essas idéias para que possam ajudar um pouco o nosso raciocínio em nossa proposta final.
HANS KELSEN afirma que “Por ‘validade’ queremos designar a existência específica de normas. Dizer que uma norma é válida é dizer que pressupomos sua existência ou – o que redunda no mesmo – pressupomos que ela possui ‘força de obrigatoriedade’ para aqueles cuja conduta regula. As regras jurídicas, quando válidas, são normas. São, mais precisamente, normas que estipulam sanções”. 32
Observamos que das lições de HANS KELSEN pode-se extrair, inicialmente, que ele trata a validade como sendo a mesma coisa de vigência e existência, pelo que a norma jurídica para ele não sendo válida não está vigente, e por conseguinte, é inexistente. Por isso NORBERTO SCHWARTZ reforçando essa idéia afirma que “... uma norma válida e que tenha eficácia, deve, necessariamente, estar em vigor. É que uma norma, para que imponha forçosamente o seu comando (válido e eficaz, portanto), não pode deixar de ser vigente. Preceito não vigente é preceito inexistente, porque ainda não incorporado ao ordenamento”. 33
31 FERRAZ JR, Tércio Sampaio. Teoria da Norma Jurídica. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1986, p. 94.
32 KELSEN, Hans. Op. cit., p. 36.
NORBERTO SCHWARTZ faz ainda a distinção da norma válida no seu aspecto formal e material, tendo como “ válida, do ponto de vista formal, a norma jurídica quando tenha sido respeitados todos os requisitos estabelecidos por outras normas de maior hierarquia”. Enquanto isso, a validade material, leva em conta o conteúdo da norma, a sua substância impositiva. “Desse modo, para ter validade do ponto de vista material, é imperioso que a regra editada seja dotada de um conteúdo que não conflite com o de outra norma que lhe seja superior em termos de hierarquia”34 e com isso a norma inferior (ou fundada) deve ser compatível com a autorização contida em outra superior (ou fundante).
Com efeito temos de levar em consideração que o conceito global de validade da norma jurídica deve ter, de um lado, o seu aspecto formal, e, de outro, o seu aspecto material, sendo que o primeiro impõe que seja editada por quem tenha competência para tanto e haja respeito quanto aos requisitos para a sua elaboração. Quanto à segunda “exige que tal norma apresente um conteúdo autorizado por outra de mais elevada hierarquia, de sorte que entre a regra subordinada e a subordinante exista sempre plena compatibilidade substancial”. 35
A validade da norma vista sob o aspecto formal e material e a conotação que a mesma toma ao se adequar ou não a uma norma de hierarquia superior é o ponto que realmente interessa ao nosso estudo, pois oferece elementos para se ter uma idéia da norma existente ou não na ordem jurídica.
NORBERTO SCHWARTZ conceitua a eficácia como sendo “...a qualidade da norma em termos de sua efetiva possibilidade de aplicação e de atuação em relação às realidades que visa tutelar. A contrário modo, seria ineficaz o preceito que objetivasse regular o impossível, ou que preconizasse estabelecer critérios de conduta de difícil consecução, porque divorciado da realidade social a que se destina”. 36
33 SCHWARTZ, Norberto. Noções de Direito. Curitiba: Juruá, 1997, p. 107.
34 Idem... p. 103-104.
35 Idem... p. 103-105.
Depois continua NORBERTO SCHWARTZ afirmando que o conceito de eficácia não pode se limitar a uma maior ou menor adesão do grupo social ao seu cumprimento, porque mesmo assim “essa eficácia não deixará de existir naquelas condições em que a sua aceitabilidade for menor. Se assim fosse, as normas que impõem exigências tributárias possivelmente não teriam eficácia, porque certamente não encontrariam a adesão da totalidade dos destinatários que compõem o universo dos contribuintes”. 37
Com isso, podemos concluir afirmando, como NORBERTO SCHWARTZ, que uma norma pode ter validade e estar em vigor sem ter eficácia, bastando que tenha sido editada pelo ente estatal competente, seguindo os procedimentos formais e esteja autorizada por outra norma de hierarquia superior. Por outro lado, uma norma pode estar em vigor, ter eficácia e não possuir validade. Basta que tenha sido editada, estar em vigor e ter condições de se exigir o seu cumprimento, porém que tenham sido “desconsiderados os pressupostos impostos para a sua elaboração e/ou por apresentar conteúdo não autorizado pela norma fundante, é inválida, formal e/ou materialmente”. 38
A professora TEREZA ARRUDA ALVIM PINTO explana que: “Discute a doutrina se o termo eficácia se refere à efetiva produção de efeitos ou à aptidão para produzi-los. Alguns autores, em lugar de discutir o sentido do termo, assinalam ter ele dois sentidos: a) sociológico (produção efetiva de efeitos); b) jurídico (possibilidade de produção efetiva de efeitos)”. 39 Assim, podemos concluir que uma coisa é a norma estar produzindo efeitos; outra, bem diferente, é ser possível essa produção de efeitos pela norma.
Diz mais TEREZA ARRUDA ALVIM PINTO que se pode fazer outra distinção quando se pensa na aptidão para a produção de efeitos e aí “a palavra eficácia tem dois sentidos: a) ter condições fáticas de atuar, por ser adequada à realidade; b) ter condições técnicas de atuar, porque presentes os pressupostos normativos que a ajustam à produção de efeitos”. 40
36 SCHWARTZ, Norberto. Op. cit., p. 106.
37 Idem... p. 106.
38 Idem... p. 107
39 PINTO, Tereza Arruda Alvim. Op. cit., p. 81
Acrescenta ainda TEREZA ARRUDA ALVIM PINTO que “a palavra eficácia pode ser entendida como aptidão, in abstracto, para gerar efeitos próprios e pode dizer respeito aos efeitos que podem ser produzidos in concreto, numa perspectiva potencial e atual, respectivamente”.41 Portanto, quando o termo aparece, é conveniente que se esclareça em que sentido o mesmo está sendo usado.
Por último, afirma TEREZA ARRUDA ALVIM PINTO que normalmente os atos viciados, nulos ou anuláveis, são (ou melhor, tendem a ser) privados de efeitos, “mas de seus efeitos típicos, isto é, daqueles a que são preordenados. Nada impede que produzam efeitos atípicos ou indiretos”. Em seguida, conclui dizendo: “Eficácia, para o nosso vocabulário, terá o sentido de efetiva produção de efeitos típicos. Com ‘efeitos típicos’, queremos significar efeitos queridos pelo agente, se for um ato: pelo legislador, se for uma norma”. 42 Haveremos de reconhecer, portanto, que o conceito de eficácia no entender de TEREZA ARRUDA ALVIM PINTO está voltado para o aspecto da possibilidade de produção de efeitos e por isso se trata de um conceito jurídico.
A posição da professora TEREZA ARRUDA ALVIM PINTO, quando trata do problema de validade no campo das nulidades, tem exata correspondência com o afirmado por TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ, ao dizer que o instituto pode ser visto também numa análise dogmática da norma, dentro da teoria das nulidades. Sob esse ângulo é que cabe visualizarmos os conceitos da Professora TEREZA ARRUDA ALVIM PINTO em sua obra específica sobre as nulidades da sentença.
O Professor JOÃO MAURÍCIO ADEODATO, traduzindo o pensamento de JHERING e procurando reduzir o problema da diversidade de conceitos ao mínimo possível, dá uma lição que vale a pena ser transcrita:
“Uma posição retoricamente mais econômica: basta validade (norma promulgada de acordo com as regras do sistema), eficácia jurídica ou vigência (porque a norma aí pode ser arguida, tem pretensão de eficácia plena e imediata, não demanda regulamentação, não está em vacatio etc.) e efetividade ou eficácia social (que é conceito sociológico-jurídico: ser a norma cumprida por um número razoável de destinatários, seja ou não válida). Parece-nos ainda mais clara a simples bipartição: norma válida, com ou sem pretensão de eficácia ou alegabilidade dogmática, e norma eficaz, a eficácia entendida faticamente como efetividade”. 43
40 PINTO, Tereza Arruda Alvim. Op. cit., p. 81.
41 Idem... p. 81.
42 Idem... p. 81-82.
Desse modo, estão restritos os conceitos ao campo exclusivo da validade e eficácia, compreendendo aí todos os outros temas que se queira introduzir numa classificação mais ampla.
O que se disse no início, quanto à dificuldade da doutrina em identificar cada um desses institutos foi confirmado no decorrer da exposição.
É certo, no entanto, que a validade está afeita mais ao aspecto da adequação da norma inferior do que a uma norma superior, quer seja no aspecto formal, quer no material. Assim, o problema da validade pode ser identificado com o aspecto da existência ou não do ato ou norma.
A eficácia é sempre empregada no sentido de aptidão para produção dos efeitos da norma ou do ato, seja em termos potenciais, seja no campo da concreção.
Esses elementos são suficientes para extrairmos da teoria geral do Direito que a decisão judicial, como espécie de norma jurídica, deve se adequar a essas idéias e atender aos conceitos que bem identificam uma norma jurídica válida e eficaz.
1.4. Teoria do ordenamento jurídico
Ninguém melhor do que NORBERTO BOBBIO para traduzir a importância da teoria do ordenamento jurídico e dizer que a mesma tem em vista estudar o “conjunto ou complexo de normas que constituem o ordenamento jurídico”. 44
Esse caminho indicativo da preocupação da doutrina pelo aprofundamento do estudo do ordenamento jurídico se faz presente pelo “fato de que, na realidade, as normas jurídicas nunca existem isoladamente, mas sempre em um contexto de normas com relações particulares entre si. Esse contexto de normas costuma ser chamado de “ordenamento”.45 Essa idéia de ordenamento jurídico faz com que o direito passe a ter a conotação de “Direito romano”, “Direito canônico”, “Direito italiano”, “Direito brasileiro”, etc.
43 ADEODATO, João Maurício. (Org.) Jhering e o direito no Brasil. Recife: Ed. Univ. UFPE, 1996, p.
83-109: O Sério e o Jocoso em Jhering – Uma visão retórica da Ciência Jurídica, p. 107.
44 BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 4.ed. Trad. de Maria Celeste Cordeiro Leite dos
Santos. Brasília: EDUMB, 1994, p. 19. Além de BOBBIO, KELSEN contribuiu bastante para a Teoria do
Ordenamento Jurídico com sua obra Teoria Geral do Direito e do Estado, aqui já citada.
Embora as regras jurídicas sempre tenham se constituído em uma totalidade, a palavra “direito”, como diz NORBERTO BOBBIO, constantemente foi utilizada de forma indiferente tanto para indicar uma “norma jurídica particular como um determinado complexo de normas jurídicas, ainda assim o estudo aprofundado do ordenamento jurídico é relativamente recente, muito mais recente que o das normas particulares, de resto bem antigo”. Os estudos sempre foram voltados para a natureza da norma jurídica, sem que tivesse havido uma maior preocupação com os problemas que um ordenamento jurídico pode levantar.
A teoria do ordenamento jurídico se presta a oferecer elementos para soluções conflituosas no campo da interpretação da norma jurídica. Assim, pode-se buscar meios para resolver as antinomias do sistema, o problema da lacuna do direito e aplicação dos princípios gerais do direito e da analogia.
Especial atenção para o nosso tipo de pesquisa merece a antinomia entre normas de diferentes hierarquias. Esse critério hierárquico, como deixa claro NORBERTO BOBBIO, “é aquele pelo qual, entre duas normas incompatíveis, prevalece a hierarquicamente superior: lex superior derogat inferiori. Uma das conseqüências da hierarquia normativa é justamente esta: as normas superiores podem revogar as inferiores, mas as inferiores não podem revogar as superiores”. 47
Mesmo quando há conflito entre os critérios adotados, quais sejam o hierárquico, cronológico e o da especialidade, sempre prevalece o da hierarquia. O conflito entre o critério da hierarquia e o cronológico, o primeiro prevalece sobre o segundo, “o que tem por efeito fazer eliminar a norma inferior, mesmo que posterior”.48 O critério da hierarquia com o da especialidade, muitas das vezes não deve prevalecer o hierárquico, dependendo das circunstâncias do caso e a espécie de norma que esteja em conflito. Porém, quando se trata de uma norma constitucional contrariada por uma norma infraconstitucional, deve prevalecer, em regra, a primeira.
45 Idem... p. 19.
46 Idem... p. 43.
47 BOBBIO, Norberto. Op. cit. p. 107.
Essas idéias são talhadas para serem aplicadas no caso que ora se estuda, pois em se tratando de conflito de normas – no caso sentença e preceito constitucional - estamos trabalhando com normas de diferentes hierarquias, cuja subordinação ao sistema é imperativo intransponível.
1.5. Teoria da Justiça: conceito e análise das correntes doutrinárias
Não é tarefa fácil conceituar Justiça. Até porque a palavra enseja diversos sentidos e passa por inúmeras fases históricas e escolas filosóficas onde em cada uma delas recebe uma conotação distinta e representa um valor reinante do período. Num aspecto filosófico, significa aquilo que é justo ou buscar-se justiça para o caso concreto ao se tratar de um julgamento que se faça de uma determinada situação que se apresenta. A palavra pode ainda traduzir a idéia de “órgão” ou “entidade” em que se procura solucionar os conflitos. Aqui tentaremos fazer um resumo da justiça no sentido filosófico voltado para o direito passando, como não poderia deixar de ser, por diversas escolas e períodos históricos, a fim de que possamos ter uma visão rápida do sentido que foi emprestado a cada um desses momentos.
A dificuldade em dizer o que é justiça data dos primórdios da civilização e encontra obstáculos intransponíveis dos mais diversos sábios que a humanidade conheceu. HANS KELSEN, ao fazer a indagação: “O que é Justiça?”, não teve dúvida em afirmar que
“Nenhuma outra questão foi tão passionalmente discutida; por nenhuma outra foram derramadas tantas lágrimas amargas, tanto sangue precioso; sobre nenhuma outra, ainda, as mentes mais ilustres – de Platão a Kant – meditaram tão profundamente. E, no entanto, ela continua até hoje sem resposta. Talvez por se tratar de uma dessas questões para as quais vale o resignado saber de que o homem nunca encontrará uma resposta definitiva; deverá apenas tentar perguntar melhor”. 49
48 Idem... p. 107.
A mesma indagação foi formulada por PAULO DOURADO DE GUSMÃO, para esclarecer que desde Sócrates até nossos dias a questão continua sem resposta, porém sempre há quem tenha uma vaga idéia, embora as tentativas de defini-la tenham sido malsucedidas, pois, desde KANT, “diz-se não ser possível conceituá-la por ser a razão cega para os valores”. Em seguida acrescenta PAULO DOURADO DE GUSMÃO:
“Mas, o grande problema atual não é defini-la – logicamente impossível dada a sua natureza (valor) – mas realizá-la e garanti-la. Uma coisa é certa: diante da injustiça, todos sentem revolta, por ser ela reconhecível no fato, no ato ou na conduta. Mas, definir o injusto ou o justo põe em desacordo gregos e troianos. Assim, na presença da injustiça, exige-se justiça por ser aí possível saber como ela deva ser para o caso concreto”. 50
PLATÃO, segundo ENRIQUE R. AFTALIÓN e JOSÉ VILANOVA, tratou da Justiça nos Livros II, III e IV dos diálogos sobre “A República”. Tem a justiça como atributo do homem, sendo vista como virtude do Estado e do indivíduo. 51
Para ENRIQUE R. AFTALIÓN e JOSÉ VILANOVA, o Estado imaginário, concebido em “A República”, deve ser integrado por três estamentos: os sábios, a quem cabe governar; os guerreiros ou guardiões, a quem compete defender a cidade dos ataques internos e externos e os trabalhadores ou artesãos, aos quais incumbe a tarefa de produzir para sustentar a cidade. 52
49 KELSEN, Hans. O que é justiça?. Trad. de Luís Carlos Borges. São Paulo: Fontes, 1997, p. 1.
50 GUSMÃO, Paulo Dourado de. Filosofia do Direito. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994, p. 77.
51 AFTALIÓN, Enrique R. e VILANOVA, José. Op. cit., 796.
52 Idem...p. 796.
Com esses elementos, sustenta PLATÃO, citado por ENRIQUE R. AFTALIÓN e JOSÉ VILANOVA, que a justiça, sendo uma virtude formal acima das virtudes materiais como a inteligência, a vontade e os sentidos, presta-se a estabelecer uma relação harmônica entre a prudência, o valor e a temperança, fazendo com que a justiça seja a saúde da alma, o caminho para o reto viver e para a felicidade tanto do indivíduo como do Estado. Está aí vislumbrada a concepção racionalista intelectualista do Estado, como bem se encontra traduzido em “A República”.53
Na opinião de ARISTÓTELES, citado por EDGAR BODENHEIMER, a justiça exige que os “iguais sejam tratados de igual maneira”. Para ele, há dois tipos de justiça: a justiça distributiva, na qual o legislador faz constar os direitos públicos e privados dos cidadãos, de acordo com o princípio da igualdade. Cada indivíduo deve ser contemplado com o que lhe é devido em virtude de sua contribuição ao bem comum. A distribuição das coisas iguais deve ser feita aos iguais, enquanto as coisas desiguais devem ser dadas aos desiguais, de acordo com o mérito de cada um. A segunda espécie de justiça é a retributiva ou corretiva. Da mesma forma que ao legislador compete elencar os direitos dos cidadãos, a função do direito também é garantir, proteger e manter esses direitos contra os ataques ilegais. Essa função corretiva é sempre administrada por um juiz. Assim, havendo um membro da comunidade invadido a propriedade de outrem, cabe à justiça restaurar o status quo, devolvendo ao prejudicado o que lhe pertencia ou reparando o dano causado. 54
Com isso pode-se afirmar que a justiça distributiva, bem como a corretiva, têm como objetivos comuns assegurar uma justa proporção na vida social da comunidade.
Essas idéias de ARISTÓTELES fizeram com que EDGAR BODENHEIMER acrescentasse que o problema da justiça está intimamente relacionado com o da igualdade na vida social humana. Justiça quer dizer tratamento igual aos iguais. A realização de justiça exige que duas situações nas quais as circunstâncias relevantes são as mesmas, sejam tratadas de forma idêntica. 55
53 Idem....p. 796-797.
54 BODENHEIMER, Edgar. Teoria Del Derecho. Trad. de Vicente Herrero. 14.ed. México: Fundo de
Cultura Económic, s.d., p. 66-63.
55 Idem...p. 54, “El problema de la justicia está íntimamente relacionado com el de igualdad en la vida
social humana. Justicia quiere decir tratamiento igual de los iguales. La realización de la justicia exige
Assim, é possível visualizar como um dos mais importantes mandamentos da justiça o de tratar os homens igualmente em circunstâncias iguais, o que deverá ocorrer também quando as situações sejam desiguais; aí os homens deverão ser tratados desigualmente.
Essa descrição de justiça, embora possa oferecer um referencial importante para ajudar o seu entendimento, não podemos aceitá-la como suficiente, até porque tem a mesma um caráter muito geral não servindo, muitas das vezes, para explicar o sentido do termo em circunstâncias bem diversas e situações peculiares ao caso que se apresenta.
Informa-nos ENRIQUE R. AFTALIÓN e JOSÉ VILANOVA que os romanos não teorizaram especialmente sobre a justiça, mas ao seu gênio jurídico coube a aplicação concreta do direito natural, o qual era válido independentemente de toda sanção legislativa e estava acima do jus civile e do jus gentium. Coube a ULPIANO a definição de justiça como iustita est constans et perpetua voluntas ius suum cuique tribuendi, difundida posteriormente para todo o ocidente como “a cada um o que é seu”.56
Incumbiu-se Santo Tomás de Aquino, como criador da escola tomista do direito e divulgador da versão teológica do jusnaturalismo, expor, interpretar e complementar a doutrina de Aristóteles, destacando a nota de alteridade e o núcleo da igualdade. Formula, ainda, uma terceira espécie de justiça com o nome de justiça social, geral ou legal.
Apesar dessa contribuição de Santo Tomás, terminou o filósofo concebendo a justiça social, geral ou legal como uma virtude, o que para ENRIQUE R. AFTALIÓN e JOSÉ VILANOVA diminui o notável reconhecimento da alteridade ao se englobar o direito na ordem moral. 57
A escola clássica do direito natural, incluindo aí GRÓCIO, TOMÁSIO, PUFFENDORF e HOBBES, teve inicialmente a virtude de elaborar códigos ideais com validez absoluta, para resolver a questão sobre a justiça. Partia da base de que o direito natural existiria, embora não existisse Deus. Informa-nos ENRIQUE R. AFTALIÓN e JOSÉ VILANOVA que Deus era quem respondia às exigências da natureza humana, porém entendida não como essência normativa, como um dever ser<