Francisco Barros Dias*
O nosso
Código de Processo Civil, em seu art. 475, afirma que “Está sujeita ao duplo
grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de confirmada pelo
tribunal, a sentença: I – que anular o casamento: II proferida contra a União,
o Estado e o Município: III – que julgar improcedente a execução de dívida
ativa da Fazenda Pública (art. 585, n. VI)”.
Segundo
NELSON NERY Jr.,[1]
“Tal medida é tradicional no direito brasileiro, oriunda do sistema medieval e
sem correspondente no direito comparado...”. Depois acrescenta o mesmo mestre:
“A justificação histórica do aparecimento da remessa obrigatória se encontra
nos ambos poderes que tinha o magistrado no direito intermédio, quando da
vigência do processo inquisitório. O direito luisitano criou, então, a “apelação
ex officio”, para atuar como sistema
de freio àqueles poderes quase onipotentes do juiz inquisitorial. Essa criação
veio com a Lei de 12.3.1355, cujo texto foi depois incorporado às Ordenações
Afonsinas, Livro V, Título LIX, 11, subsistindo nas codificações portuguesas
posteriores (Ordenações Manuelinas, V, XLII, 3; Ordenações Filipinas, V,
CXXII).
No
direito brasileiro, a primeira notícia que se tem da “apelação ex officio”, parece haver surgido com a
Lei de 4.10.1831, art. 90, que determinava ao juiz a remessa necessária ao
tribunal superior de sua sentença proferida contra a Fazenda Nacional. O CPC de
1939 manteve o instituto no art. 822. O atual, alterando a localização
topográfica, tirou o instituto do capítulo dos recursos e não repetiu o errado
nome de “apelação ex officio”, e fiel
à tradição do direito luso-brasileiro, confirmou a necessidade da remessa ao
tribunal superior nos casos que enumera (art. 475)”.
Como
se vê, trata-se de instituto criado em priscas eras, o qual não guarda similar
nos ordenamentos jurídicos alienígenas e servia para dar guarida a um processo
inquisitorial. Somente sob esse ângulo, já se pode constatar que a sua
senilidade aliada a sua origem autoritária e unilateral do provecto processo das inquisições, seriam suficientes
para extirpá-lo, por completo, de nosso ordenamento jurídico, o qual exige, nos
dias atuais, um processo em que a bilateralidade da audiência é o seu ponto
maior, e a celeridade e eficácia são exigências que a sociedade reclama da
justiça.
O
instituto deve ter servido muito bem a um período autoritário onde não existia
a igualdade das partes. Hoje, não se compedece o instituto com os princípios da
democracia, liberdade, celeridade, economia processual e o não privilégio das
partes.
A
forma como está redigido o artigo do Código é fácil perceber que os seus
incisos II e III servem apenas como meio de privilegiar a Fazenda Pública, como
parte na relação jurídica processual, o que é um escárnio nos dias atuais. O
inciso I só pode ser entendido como um resquício medieval em que os juízes de
segundo grau conservavam a curiosidade em saber as razões ou os motivos da
nulidade dos casamentos. Outra finalidade prática, infelizmente, não tem esse
famigerado duplo grau obrigatório.
É
certo que a Constituição Federal, em seu art. 5º, inciso LV, assegura o direito ao duplo grau de
jurisdição no processo judicial ou administrativo, porém o mesmo deve ser
entendido em sua forma facultativa e nunca obrigatória, o que tornaria o
processo infindável e oneroso.
Além
dos vícios aqui apontados, quanto a sua origem, a remessa oficial obrigatória
afronta outros princípios técnico-jurídicos como o da efetividade, da
celeridade, da economia processual, da igualdade das partes, da
instrumentalidade, do juízo natural, porém devemos destacar, por ser de grande
utilidade prática, o fato de ser um instituto que transforma o julgamento de
primeiro grau, numa atividade absolutamente inútil e desprezível.
Todos
os processos em que a Fazenda Pública seja parte, vindo ela a ser condenada, a
sentença não tem um mínimo de efetividade, pois depende de sua confirmação pelo
órgão hierarquicamente superior, no caso o Tribunal de Justiça, Regional Federal ou do Trabalho.
Como
é sabido a chamada remessa obrigatória não tem natureza recursal, servindo,
precipuamente, para emprestar efetividade à decisão, ou seja, enquanto o processo não for mais uma vez
julgado pelo Tribunal não transita em julgado a sentença de primeira grau, a
qual serve apenas de pressuposto para o feito ser remetido para julgamento na
Corte de Justiça superior.
O
julgamento de primeiro grau não tem, absolutamente, nenhuma validade, não pode
ser executado, não transita em julgado, não tem enfim, qualquer efeito.
Isso
provoca um descrédito na Justiça, torna inócua a atividade do juízo de primeiro
grau, retarda o andamento do processo, torna excessivamente onerosa a atividade
jurisdicional e privilegia a Fazenda Pública com dois julgamentos de uma mesma
controvérsia, através de dois órgãos jurisdicionais distintos, sendo que o
primeiro não serve absolutamente para nada, a não ser – como já dito -,
unicamente, como pressuposto para remessa do feito ao Tribunal.
Esse
descalabro leva a uma outra conseqüência grave, qual seja, a de que o juízo de
primeiro grau, além de ser um mero declarador do direito é, na prática,
absolutamente irresponsável quanto ao julgado, pois já sabe que, qualquer que
seja sua decisão, a mesma não vai ter nenhum efeito prático, nenhuma validade e
não se presta a dizer nenhum direito. Apenas declara como seria seu
entendimento, caso tenha essa disposição, mas na realidade nenhum conflito foi
por ele resolvido. Poder-se-ia dizer, não! se o Tribunal confirmar a sentença o
juiz que a proferiu agiu muito bem. Isso é no mínimo ingenuidade de quem não
quer enxergar um pouco da nossa realidade forense.
Cabe
agora algumas indagações. Esse é o processo que a sociedade deseja? Esse é o
Judiciário que a sociedade espera ter como solucionador de seus conflitos? Essa
é a Justiça que a sociedade deve pagar um custo altíssimo para ter um mero
exercício de diletantismo de seus juízes de primeiro grau? Essa é a finalidade
a que se presta o processo da atualidade?
Afigura-se-nos
razoável dizer que, se os responsáveis pelas mudanças no Judiciário e pelos
destinos desse “Poder”, parassem um pouco e refletissem sobre o absurdo que
isso provoca na prática, temos certeza que haveriam de mudar imediatamente esse
despautério.
Imaginem
que são milhares e milhares de processos que guardam essas características.
Melhor dizendo, a Justiça Federal, em quase sua totalidade, funciona dessa
forma. É tão absurda essa constatação na atividade do juiz que parece até não
se tratar de uma situação corriqueira,
num país real.
Pensemos
agora nos milhões de reais ou dólares que são despendidos com uma Justiça de
Primeiro Grau onde tem como objetivo, exclusivo, proferir um julgado para
remeter o processo a outro órgão julgador. Será que já se parou para pensar
sobre essa aberração?
Ao
invés de se buscar uma solução imediata para tão esdrúxulo problema, a situação
restou mais agravada por dois outros instrumentos legais, recentemente editados
e incorporados ao acervo de preciosidades de nosso ordenamento jurídico
nacional. Primeiro, a Lei nº 9.469, de 10 de julho de 1.997, que em seu art.
10, manda aplicar “às autarquias e fundações públicas o disposto nos arts. 188
e 475, ’caput”, e no seu inciso II, do Código de Processo Civil”. Segundo, a
Lei nº 9.494, de 10 de setembro de 1.997, que proibe a tutela antecipatória em
todos os casos que haja vantagem funcional ao servidor público.
Afigura-se
doravante que o campo de abrangência da remessa oficial ampliou-se
excessivamente e a efetividade do processo sofreu uma maior redução, o que só
fez agravar uma situação que nos parece caótica, levando a se vislumbrar um
horizonte sombrio para o processo e sua efetividade.
Imaginem
que nos Congressos, Simpósios, Conferências e Ciclos Jurídicos o que mais se
apregoa é a instrumentalidade do processo, sua efetividade, celeridade,
economia e satisfatividade, embora se trabalhe, na prática, com um monstrengo
dessa natureza, onde nenhum desses princípios são atendidos.
Para
se ter uma idéia das aberrações processuais existentes em nosso sistema legal,
é bastante que se veja o art. 12, parágrafo único da Lei 1.533, de 31 de
dezembro de 1951, que cuida do Mandado de Segurança, afirmando: “A sentença que conceder o
mandado, fica sujeita ao duplo grau de jurisdição, podendo, entretanto, ser
executada provisoriamente”.
O
que isso significa na prática? O Tribunal para onde é remetido o processo julga
pilhas infindáveis de mandados de segurança sem que esses julgamentos sirvam,
absolutamente, para nada, uma vez que a sentença já foi cumprida e a prestação
jurisdicional já se encontra satisfeita. Termina-se, por conseguinte,
reiterando-se um número infindável de julgados apenas para atender a uma disposição legal anacrônica e sem a
mínima razão de existir ou ser aplicada.
Há,
nessas simples observações algumas perplexidades: quanto o judiciário despende
com atividades absolutamente inócuas e inúteis dessa natureza? Até quando
perdurarão essas aberrações? Será que há algum desejo dos que comandam o
destino da nação em mudar esse quadro sombrio?
Apenas
constatamos, sem maiores complicações, que a permanência do duplo grau de
jurisdição obrigatório em nosso ordenamento jurídico é uma excrescência, cuja
extirpação se impõe como medida imediata a ser adotada.
· O autor é Juiz Federal no Rio Grande do Norte,
Professor da UFRN, da Escola da Magistratura, do Ministério Público e do
IEJ/RN. Tem diversos trabalhos publicados em revistas especializadas.
[1]
In Princípios Fundamentais – Teoria Geral
dos Recursos. RT. 2ª edição. São Paulo. 1.993, págs. 262/263.